quarta-feira, 17 de novembro de 2010

BELA GUTTMANN: (1905-1981) «O Feiticeiro húngaro»


"O pasa-repassa-chuta são indispensáveis para chegar ao golo. Marca e desmarca. Se a bola não é nossa, marca. Se a bola é nossa, desmarca. Este é o principio fundamental do futebol!"
(Bella Guutmann, 1962)
Para regressar às raízes e aprender, nos tempos modernos, os ensinamentos de Bela Guttmann nada melhor do que mergulhar nas dezenas de entrevistas que o técnico húngaro concedeu durante os sete anos que viveu em Portugal e retirar, sem descontextualizar as respostas, o seu pensamento sobre o futebol. 
As declarações de Guttmann, um dos maiores treinadores de sempre, resultam de conversas mantidas com os jornalistas de A BOLA. As perguntas, que permitem a manutenção do espírito subjacente aos diálogos originais foram elaboradas no sentido de manter a dinâmica do texto, no mais estrito respeito pelas ideias expressas pelo feiticeiro magiar.
- Por que vectores passou o sucesso do Benfica de Guttmann?
- O segredo do êxito do Benfica não esteve na aplicação de teorias psicológicas mais ou menos ousadas e eficientes mas sim na estruturação da equipa segundo um modelo de jogo colectivo, tanto quanto possível perfeito.
- A final com o Real Madrid foi muito difícil?
- Se eu treinasse o Real Madrid, creio que teria derrotado o Benfica, principalmente se tivesse desfrutado de uma vantagem de 2-0. O Benfica, com dois socos em cheio, vacilou. Se tivesse apanhado um terceiro murro, teria caído.
- Quais os termos exactos da sua famosa maldição, que continua a dar muito que falar... ?
- Nem daqui a cem anos um clube português volta a ganhar duas vezes seguidas a Taça dos Campeões.
Foi difícil ser treinador do Benfica?
- Contra o Benfica, todos valem, ou fazem por valer, o dobro daquilo que efectivamente valem. É uma guerra santa.
- A mística do Benfica é apenas um mito?
- Só quem está lá dentro do Benfica é que pode saber o que é a mística. Eu, antes, já tinha ouvido falar na mística. Mas encolhia os ombros. Não sabia o que era. Francamente, até pensava que não fosse nada, que não passasse de uma simples e vã palavra. Agora, porém, que a conheci, senti e vivi, afirmo-lhe que ela existe. Não há nenhum clube do Mundo que possua mística igual à do Benfica. E é este, afinal, um dos grandes segredos dos seus êxitos e da sua força.

- Não está a exagerar?
- Não. Tentarei explicar algumas das suas manifestações exteriores mais palpáveis. Veja, por exemplo, a sua massa associativa. Chove? Está frio? Faz calor? Que importa? Nem que o jogo seja no fim do Mundo, entre as neves da serra ou no meio das chamas do Inferno, por terra, por mar ou pelo ar, eles aí vão, os-adeptos do Benfica, atrás da sua equipa. Grande, incomparável, extraordinária massa associativa!
- E os jogadores sentem esse clima?
- Nunca encontrei jogadores que sentissem tanto a camisola como os do Benfica. Mesmo que não sejam tecnicamente famosos, tornam-se futebolistas assombrosos e temíveis. É a mística do Benfica, compreende?
- É adepto da rigidez táctica?
- Creio nas tácticas e na sua necessidade.
- É fácil transmitir a táctica e a estratégia aos jogadores?
- Escreveram-se tratados sobre estratégia e táctica. Mas o jogador não é um estudante universitário, é sobretudo um prático. E só passa a acreditar nesta estratégia ou naquela táctica se ela se lhe demonstra em campo.

- Há fórmulas simples no futebol?
- O «passa, repassa e chuta» é indispensável para chegar ao golo. - Só isso? - Marca e desmarca. Se a bola não é nossa, marca; se a bola é nossa, desmarca. Este é o princípio, o princípio fundamental.
- Outro conceito...
- O sistema para os homens e não os homens para o sistema.
- Quer explicar melhor?
- Cada equipa precisa de ter um sistema próprio, adaptado às características dos seus jogadores. E assim como um alfaiate não faz o mesmo feitio de fato para um corcunda ou para um homem normal, do mesmo modo um treinador de futebol não pode dar a todas as equipas que treina o mesmo figurino de jogo. Numa equipa, não chega, apenas, classe. Há necessidade também de espírito de luta. Não pode haver boas equipas sem espírito de luta

- Qual a sua fórmula para atacar?
- Passe curto nas imediações da grande área contrária para aumentar a precisão; passe longo, quando se está longe da baliza para, ganhar distância.
- Mas, com passes curtos não se perde objectividade?
- O passe curto não pode manietar a ideia do remate.
- Considera-se um treinador de ataque?
- Sempre me interessou mais que o ataque fizesse mais golos do que obrigar a defesa a não os sofrer. Não me desgosta nada que o adversário marque três ou quatro golos desde que a minha equipa marque quatro ou cinco...
- Dito assim, parece simples...
- Primeiro, marcar golos; depois tentar não os sofrer. Eis a filosofia do meu futebol.

- E as tácticas defensivas?
- Como é que o futebol pode ser um espectáculo maravilhoso se lhe faltarem golos?

- Não abre excepções, é sempre ao ataque?
- As equipas orientadas por mim não costumam jogar à defesa. Os bons resultados conseguem-se jogando ao ataque. Quanto muito tolero que se defenda o resultado se este for favorável e se cifrar na diferença mínima nos últimos dez ou quinze minutos do encontro. Mas só nessa hipótese.

- Como se faz um bom jogador?
- Um bom jogador de futebol tem de possuir 50% de bom executante e 50% de condição física. São atributos que não podem deixar de coexistir, sob pena de ambos deixarem de ter valor. Em futebol não há limites. É sempre possível fazer mais qualquer coisa. Nunca se pode dizer que se atingiu o máximo.
-Como chega ao onze que manda para dentro do campo?
- A resolução final da constituição da equipa depende também de factores importantes como o campo, o estado do tempo e também o nariz dos jogadores. O nariz é muito importante, ' sabe? Se algum se constipa e não respirar bem, não joga.
- Quem é a vedeta, o treinador ou os jogadores?
- Sou um técnico que não se aproveita dos jogadores. Quando perdemos perco eu, quando ganhamos ganham eles. É muito mais lindo assim.

- A sorte e o azar fazem parte do futebol?
- Não tenhamos dúvidas. Sem sorte não se conseguem bons resultados no futebol. Só com sorte nada se consegue. Essa sorte de que tanto se fala faz parte do futebol, é dele, pertence-lhe, tal são seus os golos, os pontapés de canto ou os penaltys. Não se podem dissociar.

-E a sorte, como consegue?
- E preciso saber pela lutar pela sorte, ou antes, não nos esquecermos dela em todas as circunstâncias. Quando se está em «dia não» luta-se pela sorte; quando se está em «dia sim» basta aproveitá-la. Compreende senhor? Nada tem nada de complicado.
Calmamente, na corrente do tempo, foi-se caminhando até à década de 60, aquela que, contemplando a histórias do século é pacifico afirmar que inventaram uma nova forma de viver a vida. Era um tempo em que o Benfica e o futebol português viviam postos em sentido por um treinador húngaro de chicote: Bella Guttman, que dois anos antes, em 1959, cometera a proeza de sagrar-se campeão nacional pelo FC Porto, apagando a nostalgia portista pelo brasileiro Yustrich, o técnico com fama de duro, que, em 1956, conquistara um titulo nacional que fugia das Antas desde há 19 anos, depois do último, que já remontava a 1940.
Apesar de adorado e convidado para renovar pelo FC Porto, acabaria por, quase clandestinamente, sem dizer nada aos directores azuis e brancos, rumar a Lisboa, ao Benfica. Deixou uma carta onde explicava que era por causa do clima frio do Porto, aquele nevoeiro tinha lhe provocado crónicas dores nas costas. Necessitava, por isso, do sol do sul, mas na verdade o canto de sereia era outro: 400 contos por ano, 150 pela conquista do campeonato, e 50 pela Taça. Na hora de assinar, conta-se que exigiu então também a inclusão de um prémio por vencer a Taça dos Campeões. Os directores do Benfica riram-se. Para eles era impensável esse triunfo europeu. Guttman pediu 200 contos. “Oh, Homem não ponha 200, ponha mais 100!”. Guttman achou bem. Ficou 300 contos.
Nos dois anos seguintes, em 1960, em Berna, frente ao Barcelona, 3-2, e em 1961, em Amsterdão, contra o Real Madrid, 5-3, o Benfica sagrava-se bi-campeão europeu. Guttman, legítimo representante da dourada escola centro europeia, na vertente austro-hungara que tantas maravilhas dera ao mundo de futebol até essa década de 50, mudara a forma de Portugal entender o futebol.
É curioso assinalar que quando chegou a Portugal, Guttman tinha já 54 anos e quando conquistou a primeira coroa europeia tinha 56. Antes, embora tivesse treinado grandes equipas, como o Rapid e Áustria de Viena, Milan, Ujpest e São Paulo nunca lograra um titulo de tamanha grandeza.
Era um motivador, cativava pela forma desengonçada como tentava falar português. Com ele, ninguém podia pisar o risco. Depois do profissionalismo paterno de Otto Glória, chegava a disciplina de chicote de Guttman, misto de Ulisses e Paracleto, como lhe chamou o Mundo Desportivo em 1962.
Título e texto retiradas do site: planetadofutebol.com