Para
regressar às raízes e aprender, nos tempos modernos, os ensinamentos de
Bela Guttmann nada melhor do que mergulhar nas dezenas de entrevistas
que o técnico húngaro concedeu durante os sete anos que viveu em
Portugal e retirar, sem descontextualizar as respostas, o seu pensamento
sobre o futebol.
As declarações de Guttmann, um dos maiores
treinadores de sempre, resultam de conversas mantidas com os jornalistas
de A BOLA. As perguntas, que permitem a manutenção do espírito
subjacente aos diálogos originais foram elaboradas no sentido de manter a
dinâmica do texto, no mais estrito respeito pelas ideias expressas pelo
feiticeiro magiar.
- Por que vectores passou o sucesso do Benfica de Guttmann?
- O segredo do êxito do Benfica não esteve na
aplicação de teorias psicológicas mais ou menos ousadas e eficientes mas
sim na estruturação da equipa segundo um modelo de jogo colectivo,
tanto quanto possível perfeito.
- A final com o Real Madrid foi muito difícil?
- Se eu treinasse o Real Madrid, creio que
teria derrotado o Benfica, principalmente se tivesse desfrutado de uma
vantagem de 2-0. O Benfica, com dois socos em cheio, vacilou. Se tivesse
apanhado um terceiro murro, teria caído.
- Quais os termos exactos da sua famosa maldição, que continua a dar muito que falar... ?
- Nem daqui a cem anos um clube português volta a ganhar duas vezes seguidas a Taça dos Campeões.
Foi difícil ser treinador do Benfica?
- Contra o Benfica, todos valem, ou fazem por valer, o dobro daquilo que efectivamente valem. É uma guerra santa.
- A mística do Benfica é apenas um mito?
- Só quem está lá dentro do Benfica é que pode
saber o que é a mística. Eu, antes, já tinha ouvido falar na mística.
Mas encolhia os ombros. Não sabia o que era. Francamente, até pensava
que não fosse nada, que não passasse de uma simples e vã palavra. Agora,
porém, que a conheci, senti e vivi, afirmo-lhe que ela existe. Não há
nenhum clube do Mundo que possua mística igual à do Benfica. E é este,
afinal, um dos grandes segredos dos seus êxitos e da sua força.
- Não está a exagerar?
- Não. Tentarei explicar algumas das suas
manifestações exteriores mais palpáveis. Veja, por exemplo, a sua massa
associativa. Chove? Está frio? Faz calor? Que importa? Nem que o jogo
seja no fim do Mundo, entre as neves da serra ou no meio das chamas do
Inferno, por terra, por mar ou pelo ar, eles aí vão, os-adeptos do
Benfica, atrás da sua equipa. Grande, incomparável, extraordinária massa
associativa!
- E os jogadores sentem esse clima?
- Nunca encontrei jogadores que sentissem
tanto a camisola como os do Benfica. Mesmo que não sejam tecnicamente
famosos, tornam-se futebolistas assombrosos e temíveis. É a mística do
Benfica, compreende?
- É adepto da rigidez táctica?
- Creio nas tácticas e na sua necessidade.
- É fácil transmitir a táctica e a estratégia aos jogadores?
- Escreveram-se tratados sobre estratégia e
táctica. Mas o jogador não é um estudante universitário, é sobretudo um
prático. E só passa a acreditar nesta estratégia ou naquela táctica se
ela se lhe demonstra em campo.
- Há fórmulas simples no futebol?
- O «passa, repassa e chuta» é indispensável
para chegar ao golo. - Só isso? - Marca e desmarca. Se a bola não é
nossa, marca; se a bola é nossa, desmarca. Este é o princípio, o
princípio fundamental.
- Outro conceito...
- O sistema para os homens e não os homens para o sistema.
- Quer explicar melhor?
- Cada equipa precisa de ter um sistema
próprio, adaptado às características dos seus jogadores. E assim como um
alfaiate não faz o mesmo feitio de fato para um corcunda ou para um
homem normal, do mesmo modo um treinador de futebol não pode dar a todas
as equipas que treina o mesmo figurino de jogo. Numa equipa, não chega,
apenas, classe. Há necessidade também de espírito de luta. Não pode
haver boas equipas sem espírito de luta
- Qual a sua fórmula para atacar?
- Passe curto nas imediações da grande área
contrária para aumentar a precisão; passe longo, quando se está longe da
baliza para, ganhar distância.
- Mas, com passes curtos não se perde objectividade?
- O passe curto não pode manietar a ideia do remate.
- Considera-se um treinador de ataque?
- Sempre me interessou mais que o ataque
fizesse mais golos do que obrigar a defesa a não os sofrer. Não me
desgosta nada que o adversário marque três ou quatro golos desde que a
minha equipa marque quatro ou cinco...
- Dito assim, parece simples...
- Primeiro, marcar golos; depois tentar não os sofrer. Eis a filosofia do meu futebol.
- E as tácticas defensivas?
- Como é que o futebol pode ser um espectáculo maravilhoso se lhe faltarem golos?
- Não abre excepções, é sempre ao ataque?
- As equipas orientadas por mim não costumam
jogar à defesa. Os bons resultados conseguem-se jogando ao ataque.
Quanto muito tolero que se defenda o resultado se este for favorável e
se cifrar na diferença mínima nos últimos dez ou quinze minutos do
encontro. Mas só nessa hipótese.
- Como se faz um bom jogador?
- Um bom jogador de futebol tem de possuir 50%
de bom executante e 50% de condição física. São atributos que não podem
deixar de coexistir, sob pena de ambos deixarem de ter valor. Em
futebol não há limites. É sempre possível fazer mais qualquer coisa.
Nunca se pode dizer que se atingiu o máximo.
-Como chega ao onze que manda para dentro do campo?
- A resolução final da constituição da equipa
depende também de factores importantes como o campo, o estado do tempo e
também o nariz dos jogadores. O nariz é muito importante, ' sabe? Se
algum se constipa e não respirar bem, não joga.
- Quem é a vedeta, o treinador ou os jogadores?
- Sou um técnico que não se aproveita dos
jogadores. Quando perdemos perco eu, quando ganhamos ganham eles. É
muito mais lindo assim.
- A sorte e o azar fazem parte do futebol?
- Não tenhamos dúvidas. Sem sorte não se
conseguem bons resultados no futebol. Só com sorte nada se consegue.
Essa sorte de que tanto se fala faz parte do futebol, é dele,
pertence-lhe, tal são seus os golos, os pontapés de canto ou os
penaltys. Não se podem dissociar.
-E a sorte, como consegue?
- E preciso saber pela lutar pela sorte, ou
antes, não nos esquecermos dela em todas as circunstâncias. Quando se
está em «dia não» luta-se pela sorte; quando se está em «dia sim» basta
aproveitá-la. Compreende senhor? Nada tem nada de complicado.
Calmamente, na corrente do tempo,
foi-se caminhando até à década de 60, aquela que, contemplando a
histórias do século é pacifico afirmar que inventaram uma nova forma de
viver a vida. Era um tempo em que o Benfica e o futebol português viviam
postos em sentido por um treinador húngaro de chicote: Bella Guttman,
que dois anos antes, em 1959, cometera a proeza de sagrar-se campeão
nacional pelo FC Porto, apagando a nostalgia portista pelo brasileiro
Yustrich, o técnico com fama de duro, que, em 1956, conquistara um
titulo nacional que fugia das Antas desde há 19 anos, depois do último,
que já remontava a 1940.
Apesar de adorado e convidado para
renovar pelo FC Porto, acabaria por, quase clandestinamente, sem dizer
nada aos directores azuis e brancos, rumar a Lisboa, ao Benfica. Deixou
uma carta onde explicava que era por causa do clima frio do Porto,
aquele nevoeiro tinha lhe provocado crónicas dores nas costas.
Necessitava, por isso, do sol do sul, mas na verdade o canto de sereia
era outro: 400 contos por ano, 150 pela conquista do campeonato, e 50
pela Taça. Na hora de assinar, conta-se que exigiu então também a
inclusão de um prémio por vencer a Taça dos Campeões. Os directores do
Benfica riram-se. Para eles era impensável esse triunfo europeu. Guttman
pediu 200 contos. “Oh, Homem não ponha 200, ponha mais 100!”. Guttman
achou bem. Ficou 300 contos.
Nos dois anos seguintes, em 1960, em
Berna, frente ao Barcelona, 3-2, e em 1961, em Amsterdão, contra o Real
Madrid, 5-3, o Benfica sagrava-se bi-campeão europeu. Guttman, legítimo
representante da dourada escola centro europeia, na vertente
austro-hungara que tantas maravilhas dera ao mundo de futebol até essa
década de 50, mudara a forma de Portugal entender o futebol.
É
curioso assinalar que quando chegou a Portugal, Guttman tinha já 54
anos e quando conquistou a primeira coroa europeia tinha 56. Antes,
embora tivesse treinado grandes equipas, como o Rapid e Áustria de
Viena, Milan, Ujpest e São Paulo nunca lograra um titulo de tamanha
grandeza.
Era um motivador, cativava pela forma
desengonçada como tentava falar português. Com ele, ninguém podia pisar o
risco. Depois do profissionalismo paterno de Otto Glória, chegava a
disciplina de chicote de Guttman, misto de Ulisses e Paracleto, como lhe
chamou o Mundo Desportivo em 1962.
Título e texto retiradas do site: planetadofutebol.com