quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A bela e o monstro: Guttmann lançou a maldição há 47 anos


A Alemanha invadiu a Hungria durante a Segunda Guerra Mundial e nunca ninguém soube o que se passou com o húngaro/judeu Bela Guttmann nesse período. Uns dizem que se refugiou num hospital em Zurique, outros que se escondeu em Paris. Se assim fosse, poderia muito bem ser um personagem da série cómica inglesa "Allô, Allô", que se passava naqueles conturbados tempos, a dizer: "Ouçam com muita atenção, só vou dizer isto uma vez."

Mas não. Bela Guttmann não é Michelle Dubois (que dizia a frase), nem pertenceu à Resistência francesa. Foi, isso sim, internacional húngaro nos anos 20 (um golo em quatro internacionalizações) e treinador visionário entre 1932 (Hakoah Viena) e 1974 (FC Porto). E foi há 47 anos que soltou a famosa frase, transformada em maldição.

"Nem daqui a cem anos uma equipa portuguesa será bicampeã europeia e o Benfica sem mim jamais ganhará uma Taça dos Campeões", disse depois de ajudar o Benfica a conquistar a segunda Taça dos Campeões seguida.

Era uma vez... O FC Porto foi a sua porta de entrada em Portugal. Conquistado o campeonato nacional em 1959, assinou pelo Benfica, com exigências impensáveis: 400 contos líquidos por ano, 150 pelo título nacional, 50 pela Taça de Portugal e 200 pela Taça dos Campeões. "200 não!" Um dirigente bem-disposto e nada crente encorajou-o a subir a parada para 300 e foi o que se viu. Bicampeão europeu - 1961 (3-2 ao Barcelona) e 1962 (5-3 ao Real Madrid) - e, sozinho, Guttmann recebeu mais que toda a equipa junta.

Bela foi então recebido por Américo Tomás (Presidente da República) e Oliveira Salazar (presidente do Conselho de Ministros) e feito comendador, tal como os jogadores. Foi há 47 anos. À saída de São Bento, virou--se para Fezas Vital, o presidente do Benfica, e segredou-lhe que se iria demitir: "Não posso treinar 14 comendattori." Era bluff? Não.

Guttmann saiu mesmo e até deixou a frase maldita no ar. "Nem daqui a cem anos uma equipa portuguesa será bicampeã europeia e o Benfica sem mim jamais ganhará uma Taça dos Campeões" (o FC Porto ganhou duas vezes, em 1987 e 2004, mas bicampeão significa duas vezes seguidas). Sem ele, de facto, o Benfica nunca mais ganhou, apesar de ter estado em mais cinco finais. A última (1990), em Viena, bem perto do cemitério judeu onde Guttmann está sepultado. Na véspera da final com o Milan (1-0, por Rijkaard), Eusébio foi ao túmulo rezar pelo técnico e pedir aos deuses que desfizessem a maldição. Em vão.

Automóveis José Augusto, o elegante extremo-direito desse Benfica bicampeão europeu, gostava do "visionário" Guttmann.

"No seu primeiro treino na Luz, em 1959, só havia três jogadores com carro: o Costa Pereira [guarda-redes], que morava em Alverca, o Artur Santos [defesa-central], que geria um talho na Amadora, e o José Águas [capitão e avançado], que trabalhava numa concessionária. Quando regressou à Luz, na segunda passagem, em 1965, já havia 30 automóveis. Ele virou-se para o Caiado [adjunto] e disse-lhe ?assim, nunca mais seremos campeões europeus?. Até agora ninguém o contrariou! Era um visionário. Morava no Chiado e ia de eléctrico para os treinos. Da Luz para casa, ia no meu carro. Era uma óptima companhia."

Allô, allô? Só vou dizer isto uma vez: daqui a 53 anos, voltamos a falar da maldição.

Título e texto de Rui Tovar, publicado a 25 de Junho de 2009 no jornal i.